Chope Duplo e Fofão: os ônibus urbanos de dois andares no Brasil
Dos ‘double-deckers’ da Light no Rio à inspiração londrina em São Paulo

Recebemos o livro comemorativo dos 120 anos da Light, celebrados no último dia 30 de maio. Em suas 210 páginas, a obra conta a movimentada história da companhia elétrica do Rio de Janeiro (que, por oito décadas, também teve presença em São Paulo).
Hoje focada apenas em serviços de energia elétrica, a Light já dominou os sistemas de gás e telefonia, além de operar bondes e ônibus. Não à toa, a companhia fundada em Toronto, em 1899, era chamada de “o polvo canadense”.
E aqui chegamos ao capítulo que nos interessa — a atuação da empresa na área de transportes. A partir de maio de 1905, a Light começou a adquirir as companhias de bondes elétricos do Rio, então capital do país. Em poucos anos, já detinha o monopólio do serviço, com mais de 600 bondes circulando por toda a cidade.

Ônibus e bondes - monopólio da Light no transporte carioca
Em 1918, outra novidade: a companhia ou a operar uma linha de ônibus totalmente elétricos. Não dependiam de rede aérea de energia, já que tinham baterias embutidas no chassi. A carroceria lembrava a dos bondes, mas o veículo tinha a liberdade de andar longe dos trilhos, com rodas calçadas com borracha maciça e um volante. O itinerário era curto, nos 2 km entre a Praça Mauá e o Palácio Monroe, mas percorria de ponta a ponta a Avenida Rio Branco, principal artéria da capital.
Em 31 de outubro de 1925, os cariocas leram nos jornais a seguinte notícia: “A Empreza Guy Motors Limited, de Wolverhampton, assignou um contrato com a Rio de Janeiro Light and Power Company, para o fornecimento de auto-omnibus no valor de trinta a quarenta mil libras esterlinas”.
Apenas um ano antes, a fabricante britânica Guy Motors inventara o primeiro chassi rebaixado para ônibus. Isso modificou o jeito de transportar ageiros: era mais fácil embarcar (bastava galgar um degrau), baixava-se o centro de gravidade e, consequentemente, obtinha-se mais conforto e facilidade de dirigir.

Chope Duplo (1928) - chassi Guy britânico e carroceria nacional
Ao ganhar uma concessão para explorar ônibus convencionais, a Light quis criar um serviço de qualidade que superasse o amadorismo então vigente. Os dirigentes da empresa canadense ficaram impressionados com a solução técnica da Guy Motors e encomendaram 170 chassis aos ingleses. Em junho de 1926, a Light fundou a Viação Excelsior, “um serviço de auto-omnibus de alto luxo”.

Modelo de ônibus elétrico que rodou no Rio até 1927
Os chassis vinham da Inglaterra e eram equipados com motores a gasolina, de 35 cv a 90 cv, fornecidos pela também britânica Daimler (que, a essa altura, já não tinha nada a ver com a homônima alemã). Já as carrocerias, de madeira, eram construídas nas oficinas da Light, na antiga Avenida Lauro Müller (que ficava entre a Francisco Bicalho e a Praça da Bandeira).
Os velhos ônibus elétricos foram aposentados no último dia de 1927, dando lugar de vez aos coletivos a gasolina.

A grande escada traseira do Chope Duplo
Além dos ônibus comuns, com dois eixos e lotação de 32 ageiros, a Light ou a fazer um modelo com três eixos e dois andares. E o jornal O Globo, de 27 de março de 1928, relatou:
“Examinámos o primeiro omnibus do tipo Imperial (...). Como se sabe, essa classe de veículos consta de dous pavimentos. No inferior vão distribuidos 12 bancos, oito dos quaes aos pares e quatro alinhados lateralmente (...). Na parte superior, isto é, na ‘imperial’, para onde se sobe por elegante escada de volta, há 17 bancos para dous ageiros (...). A instalação para o chauffeur é commoda e elegante. Como medida de previdencia, ha no vehiculo um extinctor de incendio”.
A estreia, na linha Estrada de Ferro-Lapa, foi um “successo de curiosidade”:
“Hontem, uma melindrosa encantadora, desejando viajar por cima dos outros, fez parar o Imperial, galgou os degráos e verificou que não havia um só logar. Todos os bancos estavam occupados por senhorinhas da élite”, contava O Globo em 17 de abril de 1928.
O carioca logo pôs apelidos no ônibus. O que pegou foi “Chope Duplo”. Vinha do lunfardo portenho: em Buenos Aires, ao pedir uma tulipa grande, os boêmios diziam: “Garçom, um Imperial!”.

Logo que foi lançado, em 1928, o Chope Duplo virou uma febre no Rio - já saia lotado do ponto
“Um eio no Imperial vale uma festa!”, propagandeava a Light. No carnaval de 1932, o Chope Duplo tomou parte no corso da Avenida Rio Branco. Por módicos 400 réis, os ageiros podiam ver de cima, “com sensação de aeroplano”, as batalhas de confete e os desfiles. E havia acidentes, como quando um Imperial perdeu o teto ao enfrentar um galho de árvore.
Em dezembro de 1941, o fim dos Chopes Duplos era iminente. Já considerados obsoletos e pesadões, estavam s às linhas Leopoldina-Arcos e Leopoldina-Clube Naval. Seus chassis aram a vestir carrocerias convencionais, de apenas um piso, e os motores foram convertidos ao gasogênio. Foi a saideira do double-decker carioca.

Onibus jacaré da viação Excelsior - chassi Guy, carroceria feita no Rio
Os elevados custos operacionais da frota da Viação Excelsior — composta por 149 ônibus em 1940 — aliados ao avanço da concorrência, levaram a Light a desinteressar-se pelo setor. A companhia ou a concentrar seus investimentos no segmento de energia elétrica, considerado mais estratégico. Em 1948, a Viação Excelsior teve suas atividades encerradas, marcando a retirada definitiva da Light do transporte por ônibus urbanos. Até 1963, contudo, a companhia ainda manteve a operação de bondes no Rio.
Fofão, um britânico nascido em SP
O Chope Duplo da Light não foi o único ônibus urbano de dois andares feito no Brasil. Muitas décadas depois, São Paulo também conheceu esse tipo de transporte coletivo.

Thamco ODA em São Paulo
Entre 1987 e 1988, a Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), então responsável pelo transporte público da cidade de São Paulo, desenvolveu um protótipo inspirado nos tradicionais double-deckers britânicos. O projeto nasceu por idiossincrasia de Jânio Quadros, em seu segundo mandato como prefeito (1986–1988), motivado por sua iração por Londres.
O objetivo era “modernizar” a imagem do transporte coletivo paulistano. A CMTC repintou toda a frota de vermelho, imitando os ônibus londrinos, substituindo o tradicional esquema azul e branco. O modelo de dois andares começou a circular em 8 de setembro de 1987 e foi testado inicialmente em algumas linhas, mas logo se concentrou na 5111 – Praça da Sé/Terminal Santo Amaro.

O Fofão também trabalhou em Osasco
Seu projeto foi inspirado em um modelo da britânica Leyland. Após fabricar por conta própria as dez primeiras unidades, a CMTC abriu uma licitação para a aquisição de 70 veículos. A primeira, em 1987, foi vencida pela Mafersa, porém o valor proposto foi considerado excessivo. Em 1988, realizou-se uma nova concorrência, desta vez vencida pela Thamco Indústria e Comércio de Ônibus Ltda., de Guarulhos (SP), que ofereceu o mesmo modelo por menos da metade do preço anterior.
Montados sobre chassis Scania K112CL, com dois eixos e motor traseiro aspirado de 203 cv, esses double-deckers eram oficialmente chamados de Thamco ODA (sigla para “Ônibus Dois Andares”). Contudo, ficaram mais conhecidos pelo nome Fofão, em referência ao personagem de Orival Pessini no programa infantil Balão Mágico, da Rede Globo. Tinham estrutura em aço, três portas largas, 10,6 metros de comprimento e 4,2 metros de altura. Sua capacidade total era de 117 ageiros, sendo 41 sentados no andar superior.

O nome Fofão foi assumido oficialmente desde a fase de testes até a produção na Thamco
O período de operação, porém, foi curto. Com a posse da prefeita Luiza Erundina, em 1989, as encomendas foram canceladas. Apenas 27 unidades chegaram a ser adquiridas, e a Thamco vendeu alguns poucos exemplares para Campinas, Osasco, Recife e Goiânia. Uma tentativa de adaptar o projeto para uso rodoviário não ou da fase de protótipo: o Thamco Gemini.
Os ODA em si não eram ruins — mas, além de caros, mostraram-se pouco práticos no mundo real. Suas rotas não podiam ter viadutos baixos, fiação aérea ou galhos baixos pelo caminho. Em 1993, já na gestão de Paulo Maluf, o Fofão saiu de cena. A CMTC foi extinta em 1995, e a Thamco encerrou suas atividades pouco depois.
No fim, os ônibus articulados em corredores exclusivos mostraram-se uma solução muito mais prática e eficiente que os double-deckers urbanos. Em contrapartida, desde o lançamento do Marcopolo Paradiso GV 1800DD, em 1995, os ônibus de dois andares ganharam bastante espaço no transporte rodoviário.
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