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Formigão: a picape brasileira que antecedeu o Tesla Cybertruck

O projetista Paulo Renha conta a história do modelo que fabricou nos anos 70

Formigão (Foto de Jason Vogel)
Foto de: Motor1.com

Foi em 1972 que o carioca Paulo Renha, de apenas 20 anos, concebeu um veículo “metade moto, metade carro” — algo que era inédito por aqui. O jovem estudante de engenharia havia sofrido um acidente sério de motocicleta, e sua família não queria que ele andasse mais em duas rodas. Mas o gosto pelo vento na cara falou mais alto, e Renha projetou um triciclo com motor de Fusca 1300.

Inicialmente, a ideia era fazer apenas dois exemplares: um para Renha, outro para seu amigo Roberto Camla, que participou da construção. O par de triciclos ficou pronto em 1973.

Renha no primeiro triciclo que construiu

Renha no primeiro triciclo que construiu

Foto de: Motor1.com

Camla, infelizmente, mal teve tempo de aproveitar seu brinquedo, já que, no ano seguinte, morreu em um desastre de avião nos arredores de Paris. Renha, por sua vez, formou-se e ou a trabalhar na fábrica Norma Escapamentos. Victor Sztern, dono da empresa, curtiu tanto o triciclo que propôs produzi-lo em série, chegando a exibir um protótipo com dois lugares e motor de Fuscão 1500 no Salão de São Paulo de 1974.

Depois de muita burocracia para homologar o veículo (já que ninguém sabia exatamente o que era aquilo), o Triciclo Norma começou a ser fabricado em outubro de 1975. Tinha garfo longo, corpo curto, chassi tubular coberto por uma carenagem de fibra de vidro, além de motor e caixa de Brasilia 1600.

Renha com Roberto Carlos

Renha com Roberto Carlos

Foto de: Motor1.com

O sucesso foi tamanho que Renha criou sua própria empresa, assumindo a produção em série a partir de 1976. Foi alugado um galpão que serviria como fábrica. Ficava atrás de uma típica casinha suburbana na Rua Guatemala 371, Penha Circular, na Zona Norte do Rio de Janeiro.

Naquele mesmo ano, o triciclo voltou ao Salão de São Paulo, mas agora com a marca Renha. O “cavalo de ferro do ano 2000” virou febre e chegou a ser exportado para a Europa, onde os cantores ses Michel Sardou e Johnny Hallyday, popstars de enorme sucesso na época, viraram clientes. O triciclo ganhou destaque até na capa do LP do Roberto Carlos de 1976 — e estamos falando de um tempo em que os discos do Rei eram os mais vendidos no país, estando presentes em quase todas as casas brasileiras.

Formigão 3 (1) (2)
Foto de: Motor1.com

Do triciclo à picape

Vivíamos o auge da febre dos modelos fora de série feitos sobre chassi de Volkswagen. O êxito do triciclo e o fato de já ter uma pequena fábrica estimularam Renha a fazer um automóvel. Mas, em vez de um esportivo com mecânica de Brasilia — como tantos na época — seria um veículo para trabalho e lazer. E, sendo um projeto de Paulo Renha, suas linhas fugiram ao comum. Assim nasceu, em 1978, a picape Formigão.

“O nome foi uma homenagem a um funcionário, o Jorge Ferreira, cujo apelido era Formigão. Também fazia alusão às formigas, que carregam muito peso proporcionalmente ao seu tamanho”, revela Paulo Renha ao Motor1, ados 47 anos.

Formigão
Foto de: Motor1.com

A picapezinha pesava apenas 756 kg — e sua carga máxima era de 650 kg! Mas o que realmente chamava a atenção eram as linhas retas e muito limpas da carroceria de fibra de vidro. Era um design simples e, ao mesmo tempo, totalmente inusitado, chamando muita atenção no trânsito.

“O traço da carroceria é obra do Roberto Gonçalves, um amigo arquiteto. Fizemos o carro juntos”, lembra Renha.

Formigão (Foto de Gabriel Rocha) (1)
Foto de: Motor1.com

A picape tinha frente em cunha, com o grande para-brisa formando um ângulo bem aberto com o capô. Isso garantia ao Formigão uma aerodinâmica melhor que a de qualquer picape da época. Outro toque que conferia grande modernidade eram as “máscaras negras” na frente e atrás — eram, na verdade, largos para-choques que abarcavam uma falsa grade dianteira e os faróis (de Fiat 147), bem como as lanternas traseiras. Algo bem diferente e moderno para 1978.

Não havia frisos ou outros adereços para poluir as linhas da picape. As maçanetas eram embutidas, do Puma. “As formas perfeitas são sempre as mais simples”, dizia uma propaganda, que comparava o Formigão à simplicidade do Fusca (então o carro mais vendido no Brasil).

Formigão (Foto de Gabriel Rocha) (7)
Foto de: Motor1.com

Numa época em que o tratamento de chapas era precário e os automóveis nacionais apodreciam em poucos anos de uso, ter carroceria de fibra de vidro também representava uma vantagem prática, especialmente em cidades litorâneas como o Rio.

Em 6 de abril de 1978, a coluna Auto Moto, do jornal O Globo, noticiou:
“(...) o Formigão é o mais novo utilitário nacional, destinado especialmente a serviços de entregas nas cidades, ou de transporte em pequenas fazendas (...). Consegue fazer 11 km/l de gasolina a plena carga, que é de 650 quilos. (...) Na cabina podem viajar, além do motorista, mais duas pessoas, e na carroceria aberta há amplo espaço para o transporte de volumes. (...) A fábrica tem capacidade para produzir até 15 unidades por mês.”

Um motor na caçamba

Chassi e mecânica vinham dos VW com motor traseiro refrigerado a ar. Por se tratar de uma picape, o ideal seria que o motor tivesse ventoinha plana, como nas Variant, TL, Karmann-Ghia TC e SP2. No entanto, a Volkswagen fornecia apenas motores com ventoinha em pé (de Fusca, Kombi e Brasilia) aos fabricantes de carros fora de série. Isso obrigou Renha a fazer uma tampa desnivelada com o piso da caçamba, comprometendo um pouco do espaço de carga.

A fábrica do Formigão, na Rua Guatemala (Rio)

A fábrica do Formigão, na Rua Guatemala (Rio)

Foto de: Motor1.com

Quem quisesse a caçamba com assoalho totalmente liso tinha a opção de comprar um “motor plano” diretamente na concessionária, o que aumentava o preço final do carro em 5%.

Falando nisso, o Formigão não era um carro barato. Em seu lançamento, a versão luxo custava Cr$ 135.578, o dobro do preço de um Fusca 1300 zero-quilômetro. Para comparação, uma Kombi Pick-up saía por Cr$ 105.165, enquanto a picape Ford F-100 de quatro cilindros era vendida por Cr$ 136.412. Mas lembre-se que vivíamos em um país onde as importações eram proibidas e quem curtia automóvel pagava alto para fugir da mesmice.

Trabalho e diversão

“A ideia foi fazer uma picape esportiva, que aguentasse um bom peso de carga. Porém, o Formigão acabou se transformando em um brinquedo, em função de sua capacidade de fazer curvas muito rápidas. A distribuição de peso ajudava muito”, conta Renha, apaixonado por velocidade na terra e no mar.

A versão básica tinha rodas de ferro e pneus diagonais. Já o Formigão de luxo trazia conta-giros, rodas com tala larga feitas de liga de antálio (mais resistentes e brilhantes que as de magnésio) e pneus radiais. Era comum que as picapes tivessem a suspensão rebaixada, bem ao gosto da época.

A fábrica do Formigão, na Rua Guatemala 371 (Rio)
Foto de: Motor1.com

Não havia cortes no chassi e o entre-eixos (2,40 m) era o mesmo do Fusquinha. O comprimento total de 4,01 m também era semelhante ao do besouro — só que o Formigão era mais baixinho e leve, além de ter boa aerodinâmica. Se hoje os 58 cv do motor VW 1600 refrigerado a ar não parecem grande coisa, na época eram suficientes para muita diversão.

Feito de fibra de vidro, o tinha um grande porta-luvas sem tampa. Os bancos podiam ser reclináveis e forrados com couro. O Formigão tinha ainda cintos de três pontos e um extintor de incêndio bem à mão, embutido na lateral inferior da porta do motorista. Como opcionais, a picape oferecia capota marítima, estrado de madeira na caçamba e engate traseiro.

“No começo, vendíamos apenas o Formigão zero-quilômetro. Mas começaram a aparecer encomendas de kits, para aproveitar chassis usados. Só uma companhia de helicópteros comprou 12 carrocerias”, lembra Renha.

A fábrica cresceu e mudou de endereço. Para ser exato, mudou de quarteirão, saindo do número 371 para o 429 na Rua Guatemala. Na virada dos anos 80, Renha associou-se ao amigo Eduardo de Miranda Santos no projeto do Emis, um revolucionário buggy baixinho, com chassi tubular em duplo Y e ótima dirigibilidade.

As reencarnações do Formigão

A essa altura, Renha — que ainda não tinha nem 30 anos de idade — decidiu fazer um curso de especialização em veículos elétricos nos Estados Unidos e deixou a fábrica para Eduardo.

Coyote, reencarnação do Formigão no meio dos anos 80

Coyote, reencarnação do Formigão no meio dos anos 80

Foto de: Motor1.com

“A partir daí não sei mais. Não tenho o número exato de quantos Formigões foram produzidos, mas seguramente foram algumas centenas. Anos depois, o Eduardo vendeu os moldes para a paulista Coyote”, lembra Renha.

Na nova fabricante, o Formigão foi rebatizado de Pick-up Coyote Country. A última fábrica do modelo foi a também paulista CBP que, no fim dos anos 80, mutilou o que ainda restava do molde original do Formigão para fazer um utilitário bizarro chamado EJ1.

Ao longo da década de 80, Paulo Renha criou vários carros por encomenda de pequenos fabricantes. O Dimo GT era réplica da Ferrari Dino, mas com chassi desenhado pelo engenheiro carioca e motor de at TS 1600. Dinamicamente, estava em um nível bem superior ao dos esportivos nacionais da época — para se ter uma ideia, Nelson Piquet (que já era bicampeão na F-1) tinha um! Outros projetos foram o buggy Terral, o conversível NBM Jornada e o LHM Phoenix, réplica da Mercedes SL W113 “Pagoda”.

Depois, o engenheiro ou a desenhar barcos — ramo em que atua até hoje.

Tesla Cybetruck, o Formigão made in USA

Tesla Cybetruck, o Formigão made in USA

Foto de: Motor1.com

Buchicho

“Ao criar um projeto, acho que o mais importante é fazer uma coisa que alguns vão adorar e outros vão detestar. Isso gera um buchicho que dá um grande impulso à iniciativa”, teoriza Renha.

Deve ser mesmo… Quatro décadas depois do lançamento, o Formigão voltou a ser assunto por causa do Tesla Cybertruck. Muita gente comparou as linhas do velho fora de série nacional às da polêmica picape de Elon Musk.

“Acho que o estilo reto realmente lembra. Humildemente, gostei de terem feito algo que remete ao Formigão tantos anos depois! Por outro lado, também há muitas diferenças: o Cybertruck é caríssimo, pesado, forte e cheio de recursos. Já andei em um!”, diverte-se Renha.

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