Puma e Muhammad Ali: projeto de carro esportivo foi levado a nocaute
Em 1987, pugilista tentou fabricar o Al-Fassi no Paraná, mas tudo deu errado

Uma notícia inusitada chamou atenção às vésperas do Natal de 1986: o ex-campeão mundial de boxe Muhammad Ali estava fundando uma marca de automóveis — a Ali Motors — e planejava vender, anualmente, três mil carros de fabricação artesanal.
Pelos planos iniciais, os primeiros 100 exemplares seriam comercializados nos Estados Unidos, com foco em celebridades. Depois, o grosso da produção teria como destino a Arábia Saudita e outros países muçulmanos, onde Ali era muito popular.
Galeria: Puma Al Fassi e Muhammad Ali
Nascido Cassius Marcellus Clay Jr., ele havia trocado de nome após se converter ao islamismo, em 1964. Já aposentado e multimilionário, o ex-lutador via os automóveis como apenas mais uma atividade em um leque de investimentos que incluía negócios imobiliários, petrolíferos e de hotelaria, criação de cavalos e até produção de leite e graxa de sapatos.
Com acabamento de luxo, os carros se chamariam Ali-3WC, numa referência ao fato de o pugilista ter sido três vezes campeão do mundo (World Champion, em inglês). A parte mecânica viria do Pontiac Fiero, um esportivo leve e compacto equipado com motor V6 central traseiro de 2,8 litros e 136 cv (havia ainda uma versão de quatro cilindros).
O projeto incluía inaugurar uma fábrica com algo entre 300 e 450 trabalhadores no estado de Wisconsin. Cada carro custaria entre US$ 30 mil e US$ 40 mil. O Ali-3WC, contudo, jamais saiu do papel. Seu projeto foi rapidamente abandonado — mas, apenas quatro meses depois, essa história teve uma reviravolta rocambolesca no Brasil…

Ali e os Puma (2)
Do Wisconsin ao Paraná
A primeira página do jornal O Globo de 26 de abril de 1987 noticiou a chegada de Ali ao Rio, ocorrida na véspera. Com 45 anos de idade, afastado dos ringues desde 1981 e já lutando contra o mal de Parkinson, o atleta estava aqui para acertar um contrato de exportação dos esportivos brasileiros Puma.
Tal ideia surgira no ano anterior, quando Richard Hirschfeld — controverso advogado de Ali — mostrou ao pugilista um Puma que fora comprado por seu filho nos EUA.
A essa altura, porém, a fábrica original da Puma (em São Paulo) já não existia, e os direitos de produção, assim como os moldes das carrocerias de fibra de vidro, haviam sido vendidos recentemente para a Araucária Indústria de Veículos, do Paraná.
Ali apaixonou-se pelo esportivo brasileiro e chegou à Araucária por meio de uma companhia do Texas chamada Interamerica Ltd — que, no início dos anos 80, fora representante da antiga Puma nos EUA. O objetivo do atleta era vender os carros no Oriente Médio e na Europa.
O ex-pugilista eou por Curitiba, distribuiu autógrafos e ou um dia na linha de produção da Araucária, conversando com operários e até fazendo truques de mágica, algo que tinha como hobby.
“Bem que os assessores se esforçam para que todos tenham a impressão de que ainda é Muhammad Ali quem decide as coisas. Mas, provavelmente, já não é mais assim”, vislumbrou o repórter do Globo.
Rubens Maluf Dabul, dono da Araucária, afirmou numa entrevista que o contrato com o lutador previa a exportação de 400 Puma já no primeiro ano.

Puma Al-Fassi (5)
Modificações
A chegada do ex-pugilista e seu advogado à fábrica paranaense parecia uma oportunidade caída do céu. Desde junho de 1986, a Araucária vinha estudando, juntamente à Interamerica Ltd, mudanças no Puma modelo P-018 para atualizar o esportivo e adequá-lo às exigências do mercado dos Estados Unidos.
Os automóveis encomendados por Ali deveriam ter cerca de 200 modificações. O motor poderia ser fornecido pela Porsche, e não pela Volkswagen. A carroceria era mais larga que a do Puma P-018. O para-brisa e a tampa da mala tinham dimensões diferentes. Além disso, o esportivo aria a ter faróis retangulares (da Honda CB-450), lanternas de Monza e forrado com madeira. Outra novidade seria a instalação de ar-condicionado, que já era considerado item de primeira necessidade no Oriente Médio.
O carro se chamaria Ali Stinger, referência à frase “Float like a butterfly, sting like a bee...” (“Flutuar como uma borboleta, ferroar como uma abelha...”), como ele se descrevia nos ringues. Segundo a fábrica, já havia quatro protótipos sendo montados.

Ali e os Puma (1)
Em 16 de maio de 1987, a revista Manchete deu mais novidades sobre a aventura empresarial automotiva de Ali no Brasil.
Segundo a revista, o contrato assinado pela Ali Holding com a Araucária e a Interamerica previa um investimento de US$ 36 milhões, com um aporte inicial de US$ 10 milhões. E aí entrava mais um personagem nessa história: Muhammad al-Fassi, um exótico xeque marroquino-saudita, radicado em Miami Beach, que bancaria parte da operação.
A essa altura, o prestigiado jornalista Zózimo Barrozo do Amaral publicou em sua coluna no Jornal do Brasil que haveria uma encomenda de 1.440 carros da Araucária/Puma, em um contrato de três anos que poderia ser renovado por mais dez anos. Destinados aos países árabes, estes automóveis levariam a “Al-Fassi by Muhammad Ali”. Rapidamente, o esportivo foi apelidado de “Alface” pelos operários da Araucária.
Haveria ainda outro modelo — este, sim, com o nome Ali Stinger — produzido para os mercados dos Estados Unidos e do Canadá. Segundo escreveu Fernando Calmon, então colunista de automóveis da revista Manchete, o Ali Stinger teria motor central importado, “preferencialmente da Europa”. Poderia ser produzido pela Araucária ou por outra fabricante nacional (além de visitar Curitiba, o pugilista foi a Porto Alegre conhecer a Besson, Gobbi S.A, que fazia os esportivos Miura).
Fato é que foi dado o sinal verde para a produção do lote inicial de 400 Al-Fassi, e a fábrica contraiu empréstimos para encomendar os materiais necessários aos trabalhos, como resina e para-brisas.
Veio então o baque devastador: os pedidos foram subitamente cancelados por inúmeros problemas de Al-Fassi com o governo saudita. Acusado de corrupção e evasão de divisas, o xeque teve seus recursos congelados. A encomenda não concretizada deu enorme prejuízo à Araucária, que acabou reando a marca Puma a outra empresa, a Alfa Metais Veículos.
Todo esse delírio não foi além de dois protótipos do “Alface” concluídos. O 001 foi para os Estados Unidos. O 002 hoje está no Paraná. Foi fabricada ainda uma carroceria 003, que ficou guardada de 1987 a 2009 em um galpão de Curitiba. Depois de 22 anos, porém, Rubem Rossato, um antigo diretor da Araucária e da Alfa Metais, decidiu concluir a montagem do carro nos padrões originais, convocando ex-funcionários que haviam trabalhado nos dois primeiros protótipos. O exemplar está no Rio, pouquíssimo rodado (é o conversível vermelho que aparece nas fotos desta reportagem).

Ali e Dabul em maio de 1987
O destino dos personagens
Depois da aventura do “Puma Alface”, o Muhammad al-Fassi enfrentou diversas ações por não pagamento de dívidas nos EUA. Apoiou o Iraque na Guerra do Golfo e ficou preso na Arábia Saudita por anos, até ser deportado. Perdeu ainda um processo de US$ 223 milhões para uma ex-mulher. Não pagou, alegando que todos os seus bens haviam sido confiscados pelo governo saudita. Al-Fassi morreu no Egito, em 2002, por causa de uma hérnia infectada. Tinha apenas 50 anos de idade, deixou três viúvas e sete filhos.
A história também não acabou bem para Hirschfeld, o mentor do projeto Ali/Puma. O persuasivo advogado meteu-se com traficantes de armas, foi processado por evasão de rendas, acusado de ser espião, fraudou a reconstrução de casas afetadas por um furacão e tentou jogar ácido no rosto de um juiz que o condenara. Chegou a fugir para as Ilhas Canárias, recapturado, e suicidou-se numa prisão da Flórida em 2005. A essa altura, Muhammad Ali já não era mais seu amigo: em 1999, o boxeador entrara na Justiça contra o antigo parceiro por uma questão de direitos autorais de uma biografia.
Ali desperdiçou boa parte de sua fortuna em empreendimentos fracassados. Membros de seu círculo íntimo também o roubavam sem dó. Em 1998, o ex-pugilista começou a trabalhar com o ator Michael J. Fox para conscientizar e financiar pesquisas em busca de uma cura para a doença de Parkinson. Nos últimos rounds de sua vida, ele sequer conseguia falar. Morreu em 2016, aos 74 anos. O gongo, enfim, soou para o maior boxeador de todos os tempos.
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